16/12/2024 - 18:03
Annelise Correia Silva Guissoni Rebouços Fortunato sempre quis ser juíza, mas conquistar o sonho não foi fácil. Antes mesmo de começar as aulas no direito, ela precisou bater de frente com a Universidade de Brasília, em que estudou, que queria inviabilizar a sua matrícula. Também enfrentou o preconceito e a depressão na época, aos 18 anos, alimentados por seus 201 quilos.
Mas a doutora Annelise seguiu em frente, apesar de todos os obstáculos. Hoje à frente da Correia Fortunato Advocacia e Assessoria Jurídica, ela é uma das únicas três advogadas transsexuais do país, com a meta de ser a primeira juíza do gênero. Além da advocacia, mantém uma instituição de ensino EAD, a Uni Brasília EaD, voltada à pós-graduação em diversas áreas, contando com uma instituição certificadora com mais de 4.100 cursos de especialização reconhecidos pelo Ministério da Educação, o MEC.
“A questão da inclusão, seja no direito ou na área de educação, está na base. Em todos os meus anos na universidade, eu não conheci nenhuma outra pessoa trans que entrou na faculdade de direito, na minha turma e nas posteriores”, diz Annelise. “Querendo ou não, isso é uma questão social, um estereótipo. Eu estudo para chegar na magistratura atualmente porque, até onde sei, não existe qualquer juiz no país que seja trans, homem ou mulher. Eu luto para ser a primeira, e espero que não seja a única”, ela continua.
No tema, a advogada elogia a criação de um normativo de cotas para pessoas trans na Universidade de Brasília, a UnB, local onde estudou e a 3ª melhor universidade federal do país e a 11ª de toda a América Latina, segundo o levantamento Webometrics divulgado em 2024, no Ranking of World Universities. Mas ela diz que esse esforço precisa ir além. “Existe um estereótipo para pessoas trans, e LGBT no geral, em que a educação acaba sendo enviesada. Com essa falta de base educacional, fica muito difícil chegar até mesmo na universidade, ainda mais em um curso concorrido como o de direito”, ela explica.
O interesse pelo direito nasceu cedo na vida de Annelise Correia Fortunato. O seu primeiro contato com a área foi aos 14 anos, quando ainda era uma criança, ao ajudar familiares e amigos nas ações de pequenas causas —hoje os juizados especiais. Ela também se ancorou no exemplo da irmã mais velha, que acabou desistindo do curso.
Mas Annelise precisou bastante da sua força de vontade para seguir carreira como advogada. Antes mesmo de começar os estudos, ela precisou judicializar a sua matrícula na Universidade de Brasília, que teve problemas com a sua matrícula.
“Eu estudei em escola pública a vida inteira mas, quando tinha 18 anos, eu não consegui terminar quatro matérias de um semestre por questões de saúde”, lembra a advogada. “Uma conhecida, que era dona de um colégio supletivo EJA EAD e que sabia da minha situação, me deu de presente essas matérias por lá, oferecendo bolsa integral. Só que quando eu fiz a matrícula na universidade pelo SISU, coloquei que estudava em escola pública, o que havia sido a minha realidade a vida inteira, e a instituição não aceitou a matrícula por conta dessas quatro matérias”, ela continua.
A situação forçou a aluna a viver a prática da profissão antes mesmo de começar oficialmente a estudar para ela. “Eu mesma fiz a petição, o pedido liminar e despachei com o magistrado, que entendeu que aquelas quatro matérias não eram suficientes para me equiparar a uma pessoa que estudou por um ano na rede privada”, relembra a agora advogada.
Annelise Correia Fortunato ainda passou por dificuldades emocionais no curso depois de reconquistar o direito de estudar a faculdade que queria —uma briga que durou até o final dos estudos. Na época, ela fez uma cirurgia bariátrica para reduzir o peso, reduzindo-o em 112 quilos. “No meu primeiro dia de aula, depois de toda a novela com a matrícula e eu entrei na sala de aula pela primeira vez, percebi que não conseguia sentar na cadeira porque ela era muito pequena. Foi uma humilhação, e demorei a voltar às aulas”, ela relembra.
Pelas beiradas
Depois de terminar a graduação, Annelise optou por abrir escritório próprio com a Correia Fortunato ao invés de trabalhar nas principais firmas do mercado. “Decidi ir na contramão para não me submeter diretamente a um sistema em que eu busco quebrar o viés existente”, ela explica. “A decisão de seguir carreira solo foi tomada no sentido de não seguir essa linha enviesada do sistema, de fazer diferente e de ter autonomia nas próprias decisões. Em um escritório próprio, eu teria liberdade de defender o que acredito”, afirma.
A firma abriu as portas este ano e cresceu a passos rápidos, atuando nas frentes do direito do consumidor, do direito civil, do direito empresarial e do direito penal. Segundo Annelise Correia Fortunato, o escritório começou voltado à primeira área, com foco na questão dos planos de saúde, mas evoluiu na prática do dia a dia e das vitórias nos casos que tocou.
“Você depende muito do seu trabalho para conseguir crescer um negócio do zero, porque não existe propaganda melhor do que o famoso boca a boca”, diz a advogada. “Muitos clientes foram recomendando os meus serviços, principalmente na área de saúde. Um indicava para outro, que indicava para outro e assim sucessivamente. Nessa corrente, acabei recomendada para médicos que também eram donos de clínicas médicas, e eles fechavam o contrato comigo para também representar a empresa”, ela relembra.
A Correia Fortunato atua hoje em três regiões diferentes do país, incluindo os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, bem como em Brasília. A equipe da doutora Annelise também cresceu, com um grupo de correspondentes se encarregando dos despachos feitos por ela sobre cada um dos processos administrados.
Eles incluem casos emblemáticos, como as concessões de habeas corpus para clientes da área penal, em que reformou liminarmente a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, o TJDFT.
Segundo a advogada, o órgão conta com muitos colegas que hoje servem de inspiração a ela para chegar à magistratura. A doutora Annelise lembra que, nos anos de faculdade, ela conheceu e até mesmo estudou com juízes do TJDFT, como a magistrada Lília Simone, Fábio Esteves, a delegada da polícia civil do DF Elisabeth Frade, a professora Patrícia Dreyer e a diretora da faculdade de direito da UnB Daniela Marques de Moraes, que também foi sua orientadora de graduação. Para ela, sem o apoio e inspiração dessas pessoas, não seria possível persistir no meio.
A advogada ainda lamenta a falta de abertura da OAB do Distrito Federal —onde está inscrita— para pessoas trans e de mais variadas diversificações em posições de gestão e representação, apesar de reconhecer muitos avanços ocorridos durante a gestão da atual presidência, exercida por Délio Lins e Lenda Tariana.
Em paralelo ao trabalho jurídico e a busca pelo magistrado, a jurista também administra a Uni Brasília EaD, universidade voltada a cursos de pós-graduação em todas as áreas de ensino. Para Annelise, é uma forma de consertar os problemas de um sistema educacional que ainda é deficitário.
“Querendo ou não, o aperfeiçoamento faz parte da educação. Quando você sai de uma graduação, você sai sem uma formação prática, e os cursos de pós, principalmente os feitos à distância, dão maior liberdade para o ensino chegar até você da forma que você conseguir, de uma forma acessível”, ela afirma. “A Uni Brasília EaD oferece cursos a preços reduzidos e bolsas sociais justamente para poder levar o ensino EAD no ensino superior com qualidade. A intenção é justamente essa, de equilibrar a balança. Como não conseguimos fazer isso nas bases ainda, corrigimos no ensino superior”, continua.
Nesse processo, Annelise Correia Fortunato firma a sua posição profissional no mercado, indo além do estereótipo que a área parece querer imprimir a ela. Apesar de ser uma das poucas mulheres trans do país a exercer o ofício, ela diz que quer mostrar ao país que antes de tudo é uma advogada.
“As pessoas esquecem que antes de eu ser Annelise, uma mulher trans, eu continuo sendo a doutora Annelise, uma jurista”, ela declara. “Independente de eu ser uma mulher cis ou trans, eu continuo exercendo a minha profissão do mesmo jeito que os outros. Isso não me vincula necessariamente à minha identidade. Ela é importante, claro, é importante levantar bandeiras e não aceitar determinadas situações de violações de direitos básicos fundamentais, mas isso não limita as minhas atividades”, finaliza Annelise.
Em entrevista para o IstoÉ Sua História, a doutora Annelise Correia Fortunato conta mais de sua trajetória profissional e discute os desafios da área jurídica, os casos emblemáticos de sua trajetória e como superou todos os desafios para entregar justiça a todos que a procuram. Confira:
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